Embora a mentira em sí não seja uma patologia, ela pode estar associada a transtornos graves de comportamento que devem ser tratados.
Por: Swellyn França
Muitos especialistas afirmam que é impossível passar um dia inteiro sem mentir e que todas as pessoas mentem. De acordo com alguns estudos, mentimos pelo menos duas vezes a cada dez minutos de conversação; 25% das vezes em que falamos.
O mestre em Psicologia e aluno especial do Programa de Doutorado em Ciências da Reabilitação com ênfase em Neuropsicologia do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade São Paulo (HRAC-USP), Rui Mateus Joaquim, explica que até é possível que alguém passe o dia todo sem mentir, contudo, o contrário - não passar sequer um dia sem mentir - é algo extremamente comum. "Não necessariamente inventamos algo, porém, omitimos fatos ou, às vezes, negamos com a boca sentimentos que experimentamos durante uma conversa." Ele alerta, no entanto, que mentimos com as palavras, mas nosso corpo e microexpressões faciais deixam escapar sinais emocionais contraditórios daquilo que elaboramos no discurso.
Mas, por que as pessoas mentem? Para o psiquiatra, integrante da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), William Dunningham, as mentiras fazem parte do desenvolvimento e da aprendizagem infantil como subterfúgio para a fuga de castigos, a obtenção de recompensas, o reforço de sua independência ante os pais e a criação de um mundo interior. Em outro estágio, a mentira passa a ser uma estratégia natural da comunicação humana, um recurso social, às vezes justificável, dependendo dos danos que uma verdade pode causar. "Os adultos também fazem uma leitura particular do mundo alterando a realidade, às vezes. recorrendo a mentiras para obter. manter ou evitar alguma coisa”.
O especialista em Neuropsicologia, Rui Mateus, concorda: "mentimos para esconder ou para conseguir algo. Muitos organismos se utilizam de táticas de dissimulação comportamental em suas atividades predatórias ou de defesa. Penso que a origem da mentira esteja intimamente associada à evolução e surgimento do neocórtex humano (região do cérebro mais recentemente evoluída) e sua extraordinária capacidade de abstração e representação simbólica. Manipular elementos abstratos. concatenar lógicas sobre os eventos da vida. ser sensível à suas consequências e planejar estratégias verbais de ação para minimizar possíveis danos requer um sofisticado nível de processamento da informação; requer um cérebro humano. A mentira. às vezes. ocorre por uma necessidade de ser educado. Aprendemos a mentir educadamente, por exemplo. quando ganhamos um presente que odiamos e respondemos “Que lindo. adorei. muito obrigado ", esclarece Rui Mateus.
QUANDO O ATO DE MENTIR PODE SER UM PROBLEMA
A mitomania é a tendência compulsiva para mentir. “Comumente, as mentiras dos mitomaníacos estão relacionadas a assuntos específicos, no entanto, podem ser ampliadas e atingir outras questões em casos considerados mais graves. Por exemplo, um adolescente cujo pai o maltrata pode inventar para os colegas que a sua relação com o pai é boa e divertida. Contando sobre passeios e conversas amistosas que nunca existiram. Justamente pelos mitômanos não possuírem consciência plena daquilo que comunicam por meio da palavra, costumam iludir os outros em histórias de fins únicos e práticos com o intuito de suprirem aquilo que falta em suas vidas", elucida o psiquiatra, William Dunningham.
Atualmente, a Psiquiatria e a Psicologia não reconhecem mais a mentira como um transtorno em si. Porém, este comportamento associado a outros sintomas ajuda a identificar transtornos mentais importantes. Do ponto de vista da Psicopatologia, alguns tipos de transtornos psiquiátricos fazem do comportamento de mentir um ato compulsivo.
"Neste sentido, a mitomania pode ser considerada uma síndrome mental grave, que ocorre mais frequentemente em transtornos de personalidade (antissocial, histriônica, borderline, etc], nas dissociações histéricas graves, em retardo mental leve e em quadros maníacos do transtorno bipolar, sendo necessário que os indivíduos recebam a devida atenção por parte dos amigos e familiares", reforça William.
O psicólogo Rui Mateus Joaquim fala sobre alguns destes transtornos:
Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL), também muito conhecido como Transtorno de Personalidade Borderline (TPB): É definido çomo um grave transtorno de personalidade caracterizado por desregulação emocional, raciocínio extremista e relações caóticas. “Vão de um extremo ao outro muito rápido. Em um dia são os meIhores amigos; no outro os piores inimigos. O transtorno é mais comum em adolescentes. Por que mentem? Buscam ocultar as consequências dos atos de sua identidade instável";
Transtorno de Personalidade Antissocial: É caracterizado pelo comportamento impulsivo do indivíduo afetado, desprezo por normas sociais e indiferença aos direitos e sentimentos dos outros. "Não sentem remorso, não internalizam regras sociais ou legais e não zelam pela própria segurança e a dos outros. Por que mentem? Assim sentem prazer, tiram vantagem pessoal e também fogem de obrigações:
Transtorno de Personalidade Histrionica: Distingue-se por um padrão de emocionaIidade excessiva e necessidade de chamar atenção para si mesmo. ‘Precisam estar sempre nos centro das atenções. Para isso, usam artimanhas sedutoras. Quando rejeitados, partem para o drama. Por que mentem? Isso atrai a atenção dos outros em relatos dramáticos (e inventados)’;
Transtorno da Personalidade Narcisista: Se estabelece por um padrão invasivo de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia. "Acham que são superiores e usam todos os meios para parecerem os maiorais. Por que mentem? Aumentando suas realizações, os narcisistas garantem a fama, a glória e a admiração que eles acreditam merecer."
O psicólogo volta a afirmar que mentir é uma defesa psicológica, um mecanismo adaptativo adquirido pela espécie em sua história evolutiva e, por isso, não há um tratamento para a mentira. Contudo, quando a mentira aparece como elemento importante em vários tipos de transtornos de personalidade esses, sim, devem ser tratados.
De acordo com o psiquiatra William Dunningham, o tratamento do indivíduo consiste na implementação de cuidados que associam o tratamento psiquiátrico do transtorno mental subjacente a um acompanhamento psicoterapêutico, que vise à expansão da consciência, o fortalecimento do self (o eu, o si mesmo), e o aumento da autoestima. "Dentre os diversos tipos de Psicoterapia, a Psicoterapia Centrada na Pessoa, criada por Carl Ranson Rogers (1902/1987) e a Terapia Cognitivo-comportamental costumam ter efeitos mais consistentes e duradouros. É importante nunca negar à pessoa o acesso à Psicoterapia, sendo este a chave para a remissão, até mais importante que o tratamento psiquiátrico stricto sensu", considera William.
Rui Mateus acrescenta que os transtornos de personalidade citados anteriormente por ele apresentam diferentes motivos para o comportamento de mentir, conforme as características próprias do transtorno. "Entretanto, há algo em comum entre eles; todos os motivos devem produzir, na maioria das vezes, consequências positivas para quem mente. Ocultando as consequências desastrosas, o indivíduo afasta as consequências negativas, como a pena que seria imposta, a inimizade de alguém etc., e, às vezes, atrai coisas boas como a atenção das pessoas, admiração etc. Sob a ótica da análise do comportamento, mentir é extremamente reforçador. O Behaviorismo Radical de Skinner (B. F. Skinner, um dos maiores psicólogos do século XX), demonstrou que a frequência e a manutenção do comportamento dos organismos dependem das consequências e dos efeitos produzidos por este comportamento."
Mentirinha de criança
Mentir é, na maioria das vezes, uma fonte de reforço admirável. Segundo o psicólogo, Rui Mateus, há estudos que relacionam competência social das crianças com habilidade em mentir. "Crianças começam a distinguir entre uma emoção real e uma emoção aparente durante a fase pré-escolar (3-4 anos), embora façam isso de maneira rudimentar, visto que crianças nesta idade ainda têm dificuldades de verbalizar seu entendimento sobre o porquê percebem uma emoção como real ou não. Por volta dos seis anos, elas são capazes de relatar quando e porque precisam mentir e já começam a compreender como esse comportamento pode afetar as pessoas.
Entre dez e 11 anos, as crianças se tornam mais capazes de controlar suas expressões faciais e outros fatores envolvidos na interação social: Embora o psiquiatra William considere que entre os três e os sete anos seja normal que a criança misture realidade com fantasia, as mentirinhas propositais que surgem para livrar a criança do que ela não quer fazer ou a ajudam a fugir de uma responsabilidade, devem ser combatidas com firmeza, calma e amor. "Não se deve castigar ou chamar uma criança de mentirosa, mas é preciso que os pais conversem com ela para descobrir porque a verdade foi camuflada e qual a origem da mentira."
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